segunda-feira, 30 de novembro de 2009

EL COMISSÁRIO

Isaac Duarte de Barros Junior *

Meio casquilho para animar os bailes “carapés” de paragens e mais animado que garanhão de invernada, na gíria da gauchada, assim definiam os fundadores de Dourados, o personagem apelidado de “Nego Chiquilin”. Esse sujeito era bem caborteiro quando se tratava de trabalhar firme pegando no pesado, principalmente se tivesse que puxar o cabo de uma enxada no eito dos “guajú” para carpir roça. Assim, ouvi por comentários dos pioneiros, era o perfil de um dócil veterano velhaco manso de apelido “Nego Chiquilin”, que morou perto da ponte do Porto Souza nos meados de 1910. Diziam esses povoadores, haver Deus lhe economizado no tamanho e o esticado na monumental safadeza. Chiquilin (pequeno) foi um distinto “trabalhador” que tinha uma enorme sorte com as mulheres, notadamente com as tolinhas, órfãs carentes de origem paraguaia, que habitaram esta região nos tempos idos.
Nego Chiquilin, paraguaio baixinho bom de papo, contava estórias de caçadas e pescarias, de animar a qualquer roda de ótimos mentirosos durante as tomações de tereré, apesar dos seus sessenta anos. Nascido em 1850 n’ algum lugar do chaco boreal no vizinho Paraguai, o Chiquilin foi vítima da sorte, pois nunca soube sequer o nome do pai e muito menos da sua mãe, tendo sido criado pelas mãos de pessoas bondosas que lhe encontraram na primavera, embrulhado em panos sujos remendados, chorando de fome, abandonado numa rede velha de dormir na boca de uma picada da terra guarani. Possivelmente, sua genitora deve ter sido alguma moça solteira que engravidou e se livrou dele assim que nasceu.
O “pucú” (grandão), alcunha chistosa que nada tinha a ver com o seu tamanho, sendo de pouca estatura, estava na fase da adolescência, quando um esquadrão de soldados combatentes da cavalaria brasileira o carregou a força na escaramuça, para alimentar e limpar os cavalos da tropa. Terminados esses combates beligerantes da Guerra no Paraguai, findando as hostilidades e falando um português mais ou menos, Nego Chiquilin resolveu morar no Brasil. Certo dia, colocando um pedaço de charque gordo no bornal de couro na garupa do seu cavalo, o encilhou e partiu. Sendo um bom nadador, cruzou o Rio Paraguai numa vazante baixa, enfrentando os cardumes de piranhas, segundo ele mesmo contava.
Caçou, pescou e dormiu nas camas de taipas que fazia nos lugares por onde acampava, até que acabou finalmente construindo um rancho coberto de sapé na travessia do Porto Souza. Lá, passou a trabalhar para a Companhia Mate Laranjeira, atravessando as famílias de colonizadores juntamente com o companheiro Eudélio Saravi. Caindo nas graças do desbravador Thomaz Laranjeira, repentinamente virou “comissário” (fiscal) dos ervais nativos, visitando e inspecionando os barbacuás do seu “chê patron”, que tinham por sua vez os “habilitados” (gerentes) responsáveis de locais. Cada visita do Nego Chiquilin, acabado o serviço determinado pelo “el patroncíto”, esse encerramento terminava sempre em um baile ao som de violões e gaitas.
Devido a sua “alta” posição funcional na Empresa do mate, única geradora de empregos, esse galanteador “garnisé” deslumbrava os corações femininos, porém jamais se casou ou viveu maritalmente com qualquer uma dessas mulheres. O “sabugo” dos ervais levou a vida enrolando o tempo junto aos seus cigarros de palha, mas nunca calejou as suas pequenas mãos. Sua desculpa mais esfarrapada para evitar fazer força operosa, era o fato de estar passando cheio de reumatismos pela terceira idade ou porque tinha uma sofrível “dor nas cadeiras”. Somente para dançar e jogar conversa fora, me disseram, aquele corpo de um metro e sessenta tinha maiores disposições. Quando virou viajante da empresa, suas jornadas eram solitárias, todas feitas sem acompanhantes exceto um enorme cão preto que atendia pelo nome de “fido”. O aventureiro, nunca deixava fora do seu alcance uma carabina calibre 44, uma vez que não usava outro tipo de arma. Mas, também não tinha inimigos de “dois pés”, costumava se vangloriar para os conhecidos naqueles anos. Dizia entre as “naqueadas” de fumo negro que mastigava cuspindo longe, que o fato de ser pequeno facilitava no trato o seu relacionamento social.
Mesmo ganhando um bom dinheiro “inspecionando”, Nego Chiquilin nunca requereu nenhum pedaço de terra devoluta para fazer seu “pé de meia” e nem quis guardar economias debaixo do colchão, se é que teve algum de seu para dormir. Ganhava dinheiro contado em mil réis de prata e gastava todo ele em farras regadas com bebidas. Nos bailes que promoveu, comprava reses gordas destinadas ao abate e as servia nos lautos churrascos que fazia por sua conta. Para começar um namoro, dizia que bastava o outro lado “falar fino, ter peitos e orelha furada”. Levou muita sorte com esse tipo de afirmativa, ao não ter vivido nestes nossos dias modernos. Senão, teria sérias surpresas com o sexo. Nego Chiquilin, viajava todos os finais de mês para a sede da poderosa Companhia Mate Larangeira em Campanário, recebendo das mãos dos membros da família Mendes Gonçalves, seu dinheiro mensal em moeda corrente nacional.
Apesar da sua idade sexagenária, esse caboclo gostava de fazer longas cavalgadas e consumir carne suína bem frita. Sempre que matava um porco, fritava toda a carne do animal e depois guardava essa fritura em uma lata cheia de banha do mesmo suíno. Quando queria comer um pedaço do petisco, retirava a carne da gordura fria e a esquentava no fogo antes de almoçar. Embora fosse apelidado de Nego Chiquilin, esse tropeiro errante tinha a pele da cor de purungo e os olhos azuis brilhantes, com dentes alvos sem cárie. Acredito por ter sido um “naqueador” contumaz. Não deixou filhos e nem herança para repartir, nos seus bem vividos setenta anos. Ao morrer em 1920, foi enterrado numa encruzilhada, nas margens da estrada de pó vermelho que ligava o nosso pequeno povoado douradense ao Porto Souza onde assombrava os viajantes em noites de lua clara, dizem as lendas...

*advogado criminalista, jornalista.
e-mail: isane_isane@hotmail.com

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