segunda-feira, 23 de novembro de 2009

LUSITANO ATÉ O FIM

Isaac Duarte de Barros Junior*

Quase na metade da ultima década do século dezenove em território lusitano, acompanhando a costumeira madorna portuguesa transcorria tranqüilamente o ano de 1892. Nesse ano, em Olhão na região do Algarve, nascia o menino João Cândido da Câmara. Seu pai, também de nome João, era o chefe alfandegário do porto da praieira cidade de Fuzeta, uma das doze aldeias históricas existentes em Portugal. Esse lusíada, bom chefe de família, foi um militar culto e politizado, qualidades que o diferenciavam dos homens do seu tempo. Espelhando-se nele, o moço João Cândido da Câmara completou os seus estudos secundários em um liceu na cidade de Faro, ex-Vila de Ossónoba, fundada no período pré-romano. Aos 18 anos, o jovem de espírito aventureiro decidiu imigrar para o Brasil, embarcando num navio cargueiro em 1911. Desembarcou na América do Sul aos 19 anos, percorrendo as plagas frias da Argentina, até empregar-se no comércio da vizinha cidade de Corumbá em terras brasileiras, de onde se mudaria um ano depois, desta vez para residir no município da Ponta Porã do velho Mato Grosso.

Passados aproximadamente três anos de vivencia nessa fronteira inóspita, o português João Cândido da Câmara recomeçou sua senda de trabalho, desta feita comerciando com secos e molhados, na cidade de Entre Rios (Rio Brilhante). Esforçado e, econômico, ganhou dinheiro no ramo escolhido. Casou em 1926 com Maria Rosa Antunes da Silveira e resolveu novamente mudar de cidade, escolhendo a pequena Dourados. Aqui, o casal teve seis filhos: Umbelina, a “sinhá”, João, o “totó”, Sócrates, Maria da Luz, Magdalena e José. Dessa tradicional destacada prole familiar, João Totó seria vereador, prefeito, deputado federal e atualmente é conselheiro aposentado do Tribunal de Contas. Sócrates se elegeria prefeito de Fátima do Sul e o genro Aniz Rasslan se tornaria prefeito de Glória de Dourados. Na época, que data muito próximo de sua chegada a Dourados, valendo-se da sua aprimorada escolaridade, o literato lusitano habilitou-se ao exercício do Tabelionato, função que desempenhou brevemente, todavia austero e devotado.

Rompendo com as oligarquias da velha república, conhecida como a do “café com leite”, Getulio Vargas despontaria na crista de uma revolução vitoriosa em outubro de 1930. Dentre as reformas propostas pelo novo primeiro mandatário da nação, estavam as novas diretrizes nos cargos públicos. Propuseram que essas funções, entre elas as cartoriais dos particulares, somente poderiam ser ocupadas por titulares brasileiros e pelos estrangeiros naturalizados. Fiel as suas origens, João da Câmara perdeu o cargo de tabelião, preferindo continuar um português com certeza. Ligado ao partido trabalhista brasileiro, votava regularmente, apesar de ser estrangeiro e impedido de se candidatar a cargos eletivos. Foi amigo de confiança do general Filinto Muller, a quem recebia em sua residência. Incluiu no rol dessas amizades, próceres políticos como o coronel Ramiro Noronha, primeiro interventor do Território Federal de Ponta Porã. Estava presente entre os fundadores da Associação Comercial e Industrial de Dourados, entidade que depois presidiu. Vale ressaltar, o pioneiro João da Câmara elaborou com seu punho a redação da primeira ata histórica daquela associação que representa os interesses do nosso meio empresarial local.

Particularmente, guardo na memória, pedaços da antiga paisagem urbana douradense e destaco dessas reminiscências dos meus tempos de criança, o velho casarão dos Câmara. Tratava-se de um prédio erguido com madeiras de primeira, onde ficava o bar e restaurante denominado “gaiato”. Uma parte desse enorme quarteirão, o velho português dividia com o átrio da igreja católica Nossa Senhora da Conceição. Um desses lados confrontava-se com a Praça Antonio João, cortados pelas Ruas Minas Gerais e Marcelino Pires. Num anexo, da bodega do “seu” João Câmara, havia um salão de bilhar, point dos douradenses e forasteiros. Esse lugar serviu de palco ocasional para um famoso homicídio, que seria comentado durante muitos anos nos cochichos das matronas tomadeiras de mate. João Câmara, vale Lembrar, foi sócio comercial do cunhado José Ramos Nobre, marido de sua única irmã Maria Magdalena Câmara Nobre, casal que emigrou de Portugal em 1936, poucos anos antes de eclodir a II guerra mundial no continente europeu.

Seus ternos de linho, com lenços brancos no bolso do paletó, emprestavam-lhe um ar de gentleman europeu. Na sua fala cortez e macia, adicionava uma gentileza impar. Eu, embora bem menino, nunca esqueci um gesto afável que ele tinha, ofertando em sua hospitaleira casa, deliciosas azeitonas pretas que mandava retirar de um enorme recipiente, contendo o produto importado de sua Portugal. As servia aos amigos, ofertando-as misturadas com queijo fresco, servindo-as num grande prato comprido. Nessa residência, os cardápios sempre foram escolhidos e temperados, de acordo com saborosos pratos da “santa terrinha” como ele costumava comentar. Incluí o portuga, entre as pessoas marcantes que viveram na Dourados antiga, confidenciei ao colega da minha turma do curso de direito, o Dr. José Câmara. Dentre as nossas ruas que emprestam nomes de pessoas ilustres, numa se destaca o nome do português João Cândido da Câmara.

*advogado criminalista, jornalista.
e-mail: isane_isane@hotmail.com

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