terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Terra Vermelha

Valfrido Silva (*)
Preparei-me naquele dia, para aquele espetáculo, como se fosse o único. Afinal, não é todo dia que um roteirista de cinema principiante, nascido no Jaguapiru, tem a oportunidade de ver um filme produzido em sua cidade, particularmente quando o foco da trama são exatamente os índios deste mesmo Jaguapiru. Lembrei-me dos tempos em que empapava o cabelo com brilhantina glostora e subia a Marcelino Pires para assistir bangue-bangues, no velho cine Ouro Verde. Desta vez, fiz o caminho contrário, avenida abaixo, pedindo pra Anita me deixar no centro, prosseguindo a pé até a Cabeceira Alegre.
Como nesta época do ano o sol ainda esquenta o lombo dos pobres mortais às cinco da tarde, fui buscando abrigo debaixo das marquises ao longo da avenida e tomando todo cuidado para não danificar ainda mais a coluna com o desnível das calçadas. Na esquina com a Rua Aquidauana, o primeiro flashback. Antigamente ali funcionava a Mecânica Modelo, tempo em que Gilberto Serrante começava a mostrar sua habilidade ao volante, fazendo cavalos-de-pau nas tardes de sábado. Uns passos à frente, uma vidraçaria, onde, num barracão de tábuas, funcionava um bolicho da família Minhos, tendo à frente uma casa mal-assombrada que mais tarde abrigaria o escritório do Areião. Mais cem metros e estou diante de uma grande loja de pneus. Ali, vêm-me à memória o sempre bonachão Renato Lemes Soares e seu Ferro Velho, na esquina de cá; no quarteirão da frente, também gente boa uma barbaridade, seu João Moraes, sua serraria e uma colônia de casas geminadas de madeira, muito comum da Cabeceira Alegre das muitas serrarias nas décadas de 1950/60. Do outro lado da rua era a fábrica de carroças de João Mizigutti, espremida entre a máquina de Arroz da família Anze e uma mercearia dos Porto Sandre. No lugar da máquina de arroz, hoje, uma moderna concessionária de reluzentes importados que em nada lembram os poucos fusquinhas, Gordines e Studbeackers daquela época. Reluzente, até então, só mesmo a única Mercedez Benz da cidade – do pecuarista, chefão da UDN, prefeito e deputado Antonio Moraes dos Santos.
Passando a Câmara Municipal atravesso o canteiro central, caindo na esquina do antigo “Bar do Pedro”. Como um pouco antes está a loja de lubrificantes de Vazinho Mariano, interessante também a volta no tempo e no espaço com as imagens da antiga casa Mariano (Albano, Neno, dona Jandira), atacadista que funcionava alguns quarteirões acima, esquina com a Hilda Bergo Duarte. Mais cem metros e estou diante do novo templo de consumo dos douradenses. Uma última parada na calçada para lembrar os tempos em que exatamente naquele local estava a oficina mecânica de seu Lima, tendo à frente a máquina de Arroz cujo gerente era o “Dé”, irmão de meu padrinho, sargento Baiano (temido lugar-tenente do delegado Couto). Ali, a Marcelino Pires era só erosão, local conhecido como Bueiro, linha demarcatória entre a Cabeceira Alegre e o centro da cidade e dor de cabeça constante para os prefeitos; um martírio, também, para quem fazia aquele trecho a pé ou de bicicleta.
Antes de entrar estico os olhos para o prédio da Cergrand, ao lado do ainda vazio e famoso quarteirão “parido” por especuladores imobiliários, que desalinhou o traçado das transversais, dali para frente. A área, até hoje ocupada apenas durante as visitas de circos e parques, à época de mata fechada, era-nos muito útil nas emergências fisiológicas, exceto um dia, quando ali já cheguei todo borrado, depois de horas e horas de aperto durante uma parada de Sete de Setembro, com a coisa desandando na altura do posto de Inimá Ribeiro, na esquina com a Mato Grosso.
Enfim, o cinema. São três salas, das mais modernas do Brasil, ar condicionado, poltronas espaçosas e até um lugarzinho para o refrigerante e a pipoca. Mas, como nada é perfeito, não dá pra imaginar tudo isso sem a nostalgia de “amores clandestinos”, a trilha sonora que embalava os corações apaixonados no escurinho dos cinemas daqueles bons tempos.
Tudo bem. Que venha Terra Vermelha. Programa de índio? Não. Um filme até mediano, boa fotografia (conseguiram até mostrar mato aonde não existe mais), cenas chocantes de índios enforcados, o apelo sexual de sempre e por aí vai. Porém, se a idéia era mostrar o drama dessa gente, tirando a questão de baixo do tapete, como informam as sinopses que correm o mundo, o que se conseguiu foi colar ainda mais em nossos índios a imagem do ócio, da prostituição e de pequenos furtos, o que só faz aumentar o preconceito.
Saio do cinema e percebo que os últimos raios de sol ainda iluminam o Parque Arnulpho Fioravanti. Num dia de tantas recordações, já do lado de fora do Shopping, agora na calçada da Rua Joaquim Teixeira Alves, dou-me conta de que acabei de assistir Terra Vermelha no exato local onde busquei inspiração para uma das futuras locações de meu primeiro longa-metragem. Estico as canelas em direção ao Terminal Rodoviário e vislumbro, logo adiante, ali nos fundos da garagem da Viação Motta, impoluta, resistindo bravamente ao tempo, a velha casa avarandada onde passei os anos dourados de minha infância. Naquele tempo, sim, é que era terra vermelha.
* Jornalista:valfridosmelo@hotmail.com blog: valfridosilva.blog.terra.com.br).

16 de Dezembro de 2008 20:33

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