domingo, 15 de fevereiro de 2009

NEGRA LEONTILHA...

Isaac Duarte de Barros Junior *

Na época quando eram um jericinó fechado alguns locais desta cidade de Dourados. Nas imediações da Faculdade de Agronomia, viveu durante anos, uma senhora alcunhada de negra Leontilha. Diziam os mais antigos moradores, que ela tinha sido escrava nos tempos do cativeiro. Tendo respeito e simpatia genética pela raça, herança adquirida através do meu avô abolicionista Izidro Pedroso, me tornei amigo da velha umbandista. Cheio de curiosidade relativa ao comportamento místico da geba e de como ela fazia as suas garrafadas milagrosas que tinham fama de levantar até defunto, a questionei no meio de um frondoso arvoredo da tapera onde ela morava, o porquê daquele jirau cheio de badulaques nos fundos do seu quintal. A benzedeira mineira soltou um riso muxoxo e não respondeu a minha pergunta curiosa.

No jirau da negra Leontilha um fuzuê de estranhos objetos pendurados, erguidos no fundo de seu quintal sem cercas, por entre a vegetação se avistava de tudo. Nas tramas de arame esticado, enrolados no meio da pauleira de aroeira grossa tinha: cabeça seca de rezes mortas, urinóis velhos furados de alumínio e roupas rasgadas, sabe-se Deus a quem pertenceu. A negra Leontilha gostava de beber pinga da marca tatuzinho na garrafa, enquanto naqueava um fumo de rolo e cuspia longe. Suas pernas e seu corpo tinham picadas de mutucas espalhadas, mas ela jamais perdia a pose.

Debaixo daquele entrevero de penduricalhos, fetiches das suas crendices caboclas, os cortadores de sapé costumavam contar nas prosas de sesteada, causos de fazer os cabelos ficarem em pé. Eles falavam baixo, fazendo sinais da cruz, dizendo que a negra praticava feitiços afros quando os ponteiros do relógio assinalavam meia-noite. A negra Leontilha, é verdade, comia calangos e rabos de lagartos na sopa, jurando que tinha o mesmo sabor de piranha ensopada. No seu rústico fogão de lenha e num forno redondo untado de argila preta do brejo, a crioula fazia galinhadas saborosas e assava pães, que sem dúvida, foram os mais gostosos que comi.

Falava fluentemente em tupi-guarani e um dia quando lhe perguntei de que maneira aprendeu, ela com a sua voz gutural atípica relatou que foi furunfando com a bugrada nas xíxas improvisadas. Seu asseio diário, fosse verão ou estivesse no inverno, se resumia em pegar um sabão de cinza e numa mina de água corrente, transformada em banheiro, valendo-se de canecas de latas banhava-se por meia hora. Contava sempre, que saiu de Minas Gerais bem menina e largou do marido na metade da estrada por pegá-lo em flagrante adultério. Sem rumo, depois da separação, desembocou segundo ela, na estrada da porteira velha, onde morou muito tempo, ao menos era assim que ela costumava relatar.

Certa vez a ouvi contando, que houve um sarau no sítio do Antonio Emílio de Figueiredo próximo ao futuro Distrito da Picadinha. Ali, dois bêbados encrenqueiros e portando grandes afiados punhais se esfaquearam após uma fútil discussão. A negra Leontilha, os socorreu, cuidou dos ferimentos ocasionados em ambos os briguentos, que depois daquela peleja até se tornaram compadres. Envelhecida, sossegada das lambanças da vida, segundo costumava dizer no seu vocabulário caipira, muitas vezes a velha se emburrava com facilidade e por isso conversava pouco com as pessoas que a visitavam. Fiquei sabendo que na juventude, a Leontilha pintava o rosto com rouge e os lábios com um legume que os avermelhava, possivelmente feitos da casca de beterrabas. Mas quando a conheci ela já era velha demais para curtir essas vaidades.

Todavia, eu gostava de dar gostosas risadas olhando o jirau construído pela negra Leontilha. No lugar onde ela ergueu o seu rancho, nem as onças passavam perto, afirmava essa preta velha, com seu sotaque mineiro. Porém, sua voz era cheio da bonita dicção quando bem expressada, soava como se a sua raça negra expelisse perfumes exóticos do fundo da alma pela sua garganta. Uma ocasião, eu estava acompanhado de uma namorada muito mística visitando a minha amiga dona do jirau estranho. Ela esquisitamente, nos recebeu e pressagiou à morte prematura daquela mocinha saudável, isso foi o bastante para eu ter um ataque re risos. No dia em que a moça ainda sendo minha namorada, morreu, lembrei-me da cabalística profecia da negra Leontilha. Pode até ser uma coincidência, mas muito do meu futuro ela andou profetizando olhando nas cinzas colocadas num copo de vidro cheio d’água.

Incognoscíveis, essas minhas recordações, principalmente quando com elas lembro-me das premonições da negra Leontilha, mulher sem nenhuma escolaridade, que se orgulhava de ter um chão batido sem cisco de folhas no quintal do seu casebre de sapé. Era pobre, porém limpinha, como refrão de um dito popular atual. Tinha as suas esquisitices, solidificadas nas estranhas penduricagens do seu jirau. Entretanto, a negra nunca reclamava de nada. Seu passado e a sua família eu jamais descobri onde eles moravam nas Minas Gerais. Apesar do meu cepticismo crônico, fica restando dessas lembranças o verbete místico espanhol que leciona: no creo en brujas, pero que ellas existem, eso és cierto...


* advogado criminalista, jornalista.
e-mail : isane_isane@hotmail.com

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